Taanteatro – Teatro coreográfico de tensões

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Autores: Maura Baiocchi e Wolfgang Pannek
Prefácio: Peter Pál Pelbart

Editora: Azougue Editorial
Edição: 2007
Preço: R$ 39,90

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Leia o press release: Maura Baiocchi: radicalidade e reinvenção

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Prefácio
de Peter Pál Pelbart

Quando uma artista do quilate de Maura Baiocchi decide compartilhar por
escrito seu percurso criativo é porque sua experiência adensou-se a tal
ponto que pede uma nova modalidade de propagação. Esse livro não é
apenas o registro de um rico trajeto da autora e da Taanteatro
Companhia na interface entre teatro, dança, performance, nem é só
(embora também) um esforço respeitável em debruçar-se sobre sua
produção a fim de enunciar a lógica de seu processo criativo, em meio
aos árduos bastidores de um trabalho solitário, ainda que coletivo, e
corajoso.

Este livro é também, e talvez sobretudo, uma obra por si só, onde os
autores “põem em cena” por escrito os elementos que colheram ao longo
do tempo, sejam eles conceitos, imagens, métodos, teorias, gestos,
entrevistas, fotografias. O leitor se verá confrontado com um
“arrastão” – em que os autores foram “roubando” tudo o que encontraram
no seu caminho, a filosofia pré-socrática, a física quântica, as
neurociências, a semiótica, a fisiologia, a psicologia transpessoal, a
teoria do mandala etc. Mas nada disso é gratuito: o leitor tem a chance
de vislumbrar, na pulsação daí resultante, aquilo que parece constituir
o fundo da própria estética do taanteatro e de sua prática artística -
a “coreografia das tensões”. Para além de um teatro representacional,
narrativo, dramático, que reserva à tensão um lugar pré-determinado,
com funções de empatia ou identificação, e igualmente para além de um
teatro épico, com seus efeitos de distanciamento e tomada de
consciência, o taanteatro privilegia o teatro da crueldade e seus
desdobramentos: a idéia física do teatro, a dimensão da convulsão, a
linguagem anárquica, o domínio das forças, a matéria intensiva, o plano
dos afectos, a prioridade da presentificação. Distanciando-se do teatro
psicológico ou social, privilegia-se aqui a anulação de fronteiras
entre linguagens, o ritmo, as sonoridades, o gesto, o movimento, a
descontinuidade. Inscrevendo-se na linhagem do teatro pós-dramático, o
principal aqui é o corpo, com sua potência e seu gesto livres de
sentido, com sua tensão própria. Evocando referências provenientes do
butoh, dos movimentos de vanguarda, da dança contemporânea, da
experiência antropofágica, vão afinando e precisando sua concepção
singular de teatro, de tensão, de corpo. E ao buscar inspiração
sobretudo em Nietzsche, Deleuze, Guattari, Lyotard, elaboram os
conceitos originais de Vontade de Tensão, ou de Esquizopresença, entre
muitos outros achados preciosos. Através do acoplamento de elementos
díspares provenientes de filósofos diversos, e sobretudo a partir de
sua rica experimentação ao longo das últimas décadas, apreende-se o que
os autores entendem ser o estofo de sua arte e de seu método, muito
justamente intitulada de coreografia das tensões. Atentos à qualidade
das tensões, suas oscilações, níveis, limiares, se opõem ao performer e
ator que não operam com essa matéria intensiva, apenas com a
representação, o discursivo. Assim, o que é o mar para um performer?
Não se trata de imitar a forma, mas como que captar a força do mar, ou
do cavalo, não é trotar como um cavalo, mas ser tomado pela destreza,
velocidade, selvageria… Como dizem os autores, não é preciso ir a um
haras, numa hípica, ver filmes de cavalos… pois o mundo, essa
multiplicidade de forças já está dentro de nós.. o maior perigo é
interpretar, resvalar para a caricatura ou o estereótipo… a própria
dança é um estado de gênese, sendo o corpo um lugar onde tudo é
possível, um estado de potência. Afinal, o jogo das tensões é o plano
do acontecimento, com sua dimensão incorporal, onde o sentido é
precisamente esse entre, esse jogo. No fundo, criam-se processos em vez
de obra, individua-se acontecimentos em vez de sujeitos ou objetos. Se
Deleuze está aqui presente, é um Deleuze devorado no próprio processo
de fermentação estética, e não erigido em instância de caução
filosófica. No fundo, como todo artista, os autores precisam de
aliados, eles convocam contigüidades, reconhecem filiações, estabelecem
vizinhanças teóricas. O livro de Maura Baiocchi e Wolfgang Pannek é um
convite generoso para que o leitor penetre no universo que eles mesmos
freqüentaram e a partir do qual fecundaram seu trabalho. Há momentos em
que estamos diante de um relato autobiográfico, ou melhor,
histórico-autobiográfico, há momentos em que lemos uma espécie de
manifesto, em outros temos como que o protocolo da experimentação que
foi desenvolvido junto com seus parceiros e atores, em outros tem-se
como que um guia para interessados em iniciar-se a esse trajeto, tem-se
ainda trechos onde há uma coleta de material múltiplo, como entrevistas
mais coloquiais, registro de experiências, etc. O conjunto é múltiplo,
variado, e o leitor vai sendo conduzido a um conjunto de entradas e
aproximações as mais distintas ao taanteatro e ao que caracteriza essa
concepção de teatro, nas suas relações com a dança, com o ritual, com a
música, com a textualidade, com a corporeidade, com a materialidade,
com a espiritualidade, com o cosmos, com a vida, com a filosofia. Como
se vê, o trabalho tem, assim, uma tendência de ir percorrendo em
círculos concêntricos esferas cada vez mais amplas, e no limite, a
totalidade do universo. Isso tem a vantagem de favorecer as conexões, a
multiplicidade das dimensões, a heterogeneidade das escalas, e vemos aí
uma afinidade com o estilo de um Renato Cohen, mas sempre em função de
uma perspectiva prospectiva, propositiva.

Se há um esforço louvável de sistematização do método de trabalho,
mesmo quando a matéria prima é o acaso, o imprevisto, a indeterminação,
a deriva, o estranhamento, a dissonância, a partiturização do corpo, é
preciso insistir nisso: o próprio livro já constitui, por si só, uma
tal coreografia de tensões, no plano mesmo da escrita, com momentos de
grande intensidade. Há uma página especialmente deslumbrante, em que os
autores contam sua experiência no Teatro Oficina, e a preparação
corporal dos atores do José Celso Martinez para “Os Sertões”, na parte
referente ao trans-homem. Ao analisar com grande perspicácia o corpo do
teatro Oficina (“Sua expressão corporal era simples, direta, cotidiana,
psicológica, com ênfase na insinuação sexual. Era recorrente a
literalidade do movimento, duplicando ou reforçando o sentido já
manifesto no texto da peça”), Maura Baiocchi e Wolfgang Pannek
reivindicam algo mais, a desterritorialização do corpo, a onda-gesto, o
gesto-passagem, o ser-mar-oficina, que desse passagem a essa “massa
inconsciente e bruta, crescendo sem evolver, sem órgãos e sem funções
especializadas”, como diz Euclides, o polipeiro. Escrevem eles: “Se
falamos de sexualidade, sensualidade ou o ato de comer, podermos fazer
isso através de um corpo já territorializado, funcionalizado – fazer
sexo com os órgãos genitais – quer dizer gestos, expressões já
conhecidos. Ou: podemos comer com o corpo todo, encarar todo o corpo
como uma vontade de sexo e digestão que copula e devora pelos olhos,
braços, pés, pelos cabelos, pelas costas, pelo cérebro, que, resumindo,
emana sensualidade, sexualidade e fome por todos os poros transando com
o ar, entregue a um jogo cósmico de eros e thanatos. Podemos tentar
ampliar nosso corpo, infectando nossa expressão pela dança do pólipo,
tingindo nossa mente com seus coloridos fantásticos, sem restringir
inconscientemente a nossa expressão a códigos exauridos cuja função
principal reside em cooptar o público sem erotizar sua imaginação. Em
termos práticos isso significa um enriquecimento de recursos, pois nada
nos impede de voltar a fazer sexo ou de comer com os orifícios
preferencialmente utilizados para essa tarefa. O Homem precisa ser
criado – uma vez que o próprio termo “homem” ou “ser humano” não passa
de uma convenção, como se fosse algo já conhecido, resolvido e acabado.
Para ir além, para descobrir e criar algo novo a respeito da condição
humana, necessitamos de um processo de des-humanização. O Transhomem
exige um máximo de disposição, comprometimento e imaginação para
transformações constantes de paradigma. É preciso fazer xixi pelo
ouvido, e muito mais…” A meu ver, nesse trecho maravilhoso está a
experimentação encarnada do que é uma desterritorialização do corpo, do
que é um corpo-sem-órgãos, do que são os devires, do que é o humano
demasiadamente humano, o além-do-homem. Do mesmo modo, quando dizem que
não existe o corpo em si em cena, mas o acontecimento cênico que ocorre
no confronto e no casamento e nas passagens entre as forças múltiplas
da polifonia teatral, e que o tônus cênico (tensão, energia) resulta do
jogo dinâmico e vivo entre as cinco musculaturas, donde a porosidade,
penetrabilidade e atividade irradiadora do mundo, eles já ” puseram em
cena pela escrita o cerne de sua concepção e de sua prática,
acrescentando lindamente, sobre o performer: “Sua vontade de tensão
vira também vontade de mistura e de composição, gerando uma perspectiva
de fecunda imprevisibilidade. Na medida em que aprende a se lançar no
entre, o performer se abre para o outro (não só o devir orgânico,
humano e animal, mas também inorgânico), incorporando-o, tornando-o
mestiço, monstruoso, ao mesmo tempo que entrega-se à devoração por
outras forças da cena”

 

 

Que esses poucos fragmentos sirvam de convite a um livro instigante
e generoso, que poderá servir de estímulo a criadores e pesquisadores
de várias áreas, sobretudo àqueles que sentem a urgência de repensar as
práticas estéticas da contemporaneidade.